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O mistério sobre a cientista que revolucionou o estudo das aves no Brasil

Emilia Snethlage atuou no Museu Paraense Emílio Goeldi e no Museu Nacional e construiu carreira de projeção internacional

Karine Rodrigues

27 jun/2025

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“Minha vida é rotineira, porém prazerosa, principalmente de manhã, quando vou para a mata, de onde não dá para voltar antes das duas ou três da tarde, depois venho para casa, almoço, preparo as aves, tomo banho, janto, tomo notas, preencho etiquetas, jogo paciência, devoro jornais velhos, deito-me na rede e costumo adormecer rápida e tranquilamente”. Assim a cientista alemã Emilia Snethlage, referência no estudo da avifauna, descreveu o cotidiano de mais uma de suas expedições à região amazônica, na última carta escrita ao irmão, datada de 4 de novembro de 1929.   

Os longos relatos de Snethlage enviados aos parentes na Alemanha eram uma versão intimista de como ela fazia ciência no Brasil das primeiras décadas do século 20, atividade então essencialmente masculina. Mergulhada em uma Amazônia já habitada por seringueiros e levas de trabalhadores contratados para rasgar a floresta e construir a Estrada de Ferro Madeira-Mamoré, ela compartilhava conhecimentos que maravilhavam os familiares e, quando abordados em artigos acadêmicos, causavam grande impressão em grandes nomes de áreas como a ornitologia e a etnologia.  

Estudo recém-publicado em História, Ciências, Saúde-Manguinhos revela documentos inéditos que ajudam a reconstituir os últimos momentos de vida de Snethlage e a esclarecer detalhes sobre a sua morte. Segundo o autor, o biólogo Marco Aurélio Crozariol, pesquisador do Museu de História Natural do Ceará Prof. Dias da Rocha, vinculado à Universidade Estadual do Ceará (Uece), a zoóloga faleceu aos 61 anos, durante expedição científica a Porto Velho. Na ocasião, atuava como naturalista viajante do Museu Nacional, no Rio de Janeiro, sua casa desde a saída do Museu Paraense de História Natural e Etnografia atual Emílio Goeldi – em Belém, onde ingressara em 1905 e permanecera até 1921.  

Usou a herança para cursar uma universidade  

Snethlage construiu uma trajetória marcada por pioneirismos. Nascida na Prússia, em 1868, segunda de quatro irmãos, perdeu a mãe aos quatro anos e foi educada pelo pai, pastor luterano. Por uma década, trabalhou como preceptora, até ganhar uma herança e realizar o sonho de estudar ciências naturais. Foi uma das primeiras mulheres a cursar a universidade na Alemanha, doutorando-se com a mais alta distinção em História Natural. Um ano depois, em 1905, atuava como assistente de zoologia do ornitólogo Anton Reichenow (1847-1941) quando soube da vaga para trabalhar com o zoólogo Emílio Goeldi (1859-1917), então diretor do Museu Paraense de História Natural e Etnografia, que ela viria a dirigir. Tornou-se a primeira mulher a ocupar um cargo público em uma instituição de pesquisa no Brasil. 

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Snethlage durante uma de suas expedições, com a espingarda Flaubert no colo, e acompanhada por assistentes. Fonte: Arquivo pessoal da família Snethlage

Aos 37 anos, Snethlage encontrou um Brasil onde a ciência dava os primeiros passos rumo à institucionalização e estava associada a um projeto civilizatório. Aqui, ela construiu uma sólida carreira, reconhecida pela rede que ela formou com cientistas nacionais e estrangeiros. Para lidar com os desafios de ser praticamente uma exceção no ambiente científico eminentemente masculino, precisou, porém, criar estratégias, como pedir aos editores de seus artigos científicos para que seu primeiro nome, Emília, fosse abreviado, omitindo, assim, o seu gênero.

Em geral sozinha ou com um ou dois assistentes, nomeados em cartas à família, a zoóloga se embrenhava na mata para realizar expedições que chegavam a durar meses. Prendia os longos cabelos e, de saia até os pés, munida de caderno de campo, espingarda e outros artefatos necessários à coleta de aves, enfrentava o desconhecido. Foi assim que fez as observações para estabelecer as bases da biogeografia de aves no Brasil, identificando variações na distribuição das espécies em áreas geográficas. Em 1909, realizou uma inédita expedição na qual percorreu, a pé, o trajeto entre os rios Xingu e Tapajós na companhia de sete guias indígenas. Anos depois, em 1914, apresentou ao mundo parte de seu trabalho com a publicação do Catálogo das aves amazônicas. 

Última coleta de aves foi realizada poucos dias antes de morrer 

No período em que trabalhou no Museu Nacional, iniciado em 1922, a zoóloga realizou diversas viagens pelo país, coletando material para um livro sobre as aves do Brasil. O último destino foi Rondônia, em 1929. Snethlage faleceu dois dias após retornar a Porto Velho, onde estava explorando a avifauna do rio Madeira. Na ocasião, fez viagens curtas pela região e foi de trem até Guajará-Mirim, onde “coletou sua última ave em vida, a 120ª da expedição, conforme indicado em seu caderno de campo para o dia 15 de novembro”, escreve Crozariol. 

Snethlage foi encontrada morta na manhã do dia 25 de novembro, por uma funcionária do Hotel Brasil, onde se hospedara. Estava deitada na cama, de barriga para baixo, com as mãos entrelaçadas no peito. Vestia saia, casaco e botinas sem meias. De acordo com o atestado de óbito, ela teria falecido durante a madrugada, em razão de um ataque cardíaco. Tinha 61 anos. “Minha hipótese é que ela passou mal no meio da noite, levantou-se para pedir ajuda e calçou os sapatos sem meias por estar apressada, pois foram encontrados vários pares dentro da maleta dela”, relata o autor do estudo. 

Em carta datada de 14 de dezembro de 1929, enviada ao então diretor do Museu Nacional, Edgard Roquette-Pinto (1884-1954), o delegado de polícia de Porto Velho Raul Andrade, encarregado do caso, relata outros aspectos desconhecidos da morte da cientista. Logo ao chegar da expedição científica, ela teria passado a noite “um pouco incômoda”, mas melhorado no dia seguinte, 24. “Não tendo, portanto, necessitado de assistência médica, julgando o dono do hotel que se tratasse de qualquer pequeno incômodo”, escreve o delegado, comunicando a morte ocorrida na madrugada do dia 25 e informando ter tomado “todas as medidas que o cargo requeria”, pelo dever e “por se tratar de pessoa de destaque sem ter a seu lado ninguém conhecido nem de família que se interessasse”. 

O exame no corpo de Snethlage, segundo o relato do delegado, foi realizado por Antonio Magalhães, então diretor do Hospital da Candelária. Ela foi levada para a igreja da cidade e enterrada no mesmo dia, às 17 horas, “provisoriamente, em terreno que se pode perpetuar, pelo que a Prefeitura Municipal cobra a importância de Rs.100$000, no caso que V. Excia. deseje que fique a sepultura perpétua”. Acrescenta que, diante da falta de tempo, tomou a liberdade de mandar fazer uma coroa em nome de Roquette-Pinto e demais empregados do Museu Nacional. Junto à correspondência, enviou o atestado de óbito, o laudo do exame médico e um exemplar do jornal Alto Madeira, com a notícia sobre a morte da zoóloga. 

Cruz com o nome de Snethlage não foi localizada 

Crozariol chama atenção para outro documento enviado pelo delegado, expedido pela Prefeitura de Porto Velho, no qual constam o nome do cemitério e o local exato onde Snethlage foi enterrada: uma sepultura “provisória” no cemitério público dos ‘Inocentes’, no quarteirão de ‘n.1” e sepultura “n.538”. Apesar de existirem, pelo menos, duas fotografias do local do sepultamento, identificado por uma cruz com o nome de Snethlage, não se sabe onde estão o túmulo e os restos mortais da cientista alemã. “Atualmente, a cruz está desaparecida, e esse local é desconhecido”, diz o biólogo, que foi a Porto Velho, mas não conseguiu localizar o túmulo, pois a distribuição dos quarteirões no cemitério foi alterada. “Uma planta do cemitério daquela época poderia resolver esse caso, porém, em fevereiro de 2019, fiz uma busca nos arquivos da cidade e no próprio cemitério acompanhado de Gilbson Morais, gerente de divisão do departamento dos cemitérios de Porto Velho, mas não foi possível localizar nada”, escreve Crozariol. 

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Local do sepultamento. Fonte: Setor de Ornitologia/Museu Nacional

Os documentos apresentados pelo biólogo foram encontrados em 2018, durante uma organização no Setor de Ornitologia do Museu Nacional, na Quinta da Boa Vista. “Estavam em um armário onde há muitos anos ninguém mexia. Como sabiam que eu acompanhava o trabalho da Snethlage, entraram em contato comigo”, conta Crozariol, acrescentando que o material inédito foi localizado poucas semanas antes do incêndio que destruiu, em setembro de 2018, boa parte do acervo da sede do Museu Nacional, inaugurada havia 200 anos e administrada pela

Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). O biólogo fez doutorado em Zoologia no Museu Nacional e despertou para a obra da cientista alemã ao estudar, no mestrado, a reprodução do chororó-do-araguaia (Cercomacra ferdinandi), espécie descrita pela ornitóloga em 1928.  

Desaparecimento é “grave desrespeito” 

Para Nelson Sanjad, pesquisador do Museu Paraense Emílio Goeldi e professor do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Pará (UFPA), o desparecimento do túmulo de Snethlage, juntamente com seus restos mortais, é um “grave desrespeito e um ultraje a qualquer pessoa”. Autor de artigos sobre a trajetória da cientista alemã e de livro sobre a história do Museu Paraense Emílio Goeldi, baseado na tese defendida no Programa de História das Ciências e da Saúde (PPGHCS) da Casa de Oswaldo Cruz (COC/Fiocruz), ele considera que o ocorrido é “muito constrangedor” e “revela o quanto lidamos mal com a memória de cientistas”. 

Segundo o historiador, Snethlage foi reconhecida em vida, dentro e fora do Brasil. Apesar de ser “respeitadíssima como cientista e muito admirada pela coragem e pelos desafios que enfrentou em campo”, com o passar do tempo, ela foi perdendo destaque, mas não entre os ornitólogos, embora ela fosse mais conhecida pelas coleções que organizou e pelas espécies que descreveu: “Recentemente, os próprios ornitólogos (estimulados em grande parte por historiadores) passaram a reavaliar a obra de Snethlage, inscrevendo-a entre os grandes construtores da ornitologia brasileira, como Johann Natterer (1787-1843) e Helmut Sick (1910-1991)”. 

“Temos hoje um conhecimento bem mais amplo da extraordinária dimensão da obra de Snethlage”, diz Sanjad, avaliando que, com as novas pesquisas, a importância da obra e da trajetória da zoóloga “só tenderá a crescer”. Crozariol, por exemplo, coorientou há pouco tempo uma dissertação defendida no Museu Nacional sobre duas expedições de Snethlage ao Ceará, realizadas em 1910 e em 1915. A autora, Aline Ariela Pereira, coletou dados e comparou registros históricos deixados pela cientista alemã. Ela visitou museus onde estão amostras de aves coletadas por Snetlhage, no Rio, em Belém e em Berlim. 

Reemergência na História das Ciências e da Saúde com Sanjad e Junghans 

O legado da ornitóloga alemã foi inicialmente comentado pela bióloga Bertha Lutz (1894-1976) e pelo herpetólogo Osvaldo Cunha (1928-2011), diz o historiador da UFPA, acrescentando que, no fim dos anos 1990, o nome de Snethlage volta à tona com a antropóloga Mariza Corrêa (1945-2016), em estudos sobre gênero. No campo da História das Ciências e da Saúde, a naturalista alemã se torna objeto de estudo com a dissertação de mestrado da historiadora Miriam Junghans, defendida, em 2009, no PPGHCS.  

“A partir daí, sucederam-se diversos estudos, no Brasil e na Alemanha, ressaltando a obra ornitológica e a etnográfica, as viagens e coleções formadas por ela, as redes de conhecimento onde operou, as relações de gênero em sua trajetória profissional e até mesmo as misteriosas circunstâncias de sua morte”, diz Sanjad, autor de parte importante dessa produção. Junghans, que seguiu se aprofundando na trajetória da zoóloga após a dissertação, destaca o fato de que Snethlage, além de ter produzido conhecimento de grande relevância na ornitologia, provou que o trabalho de campo poderia ser feito por uma mulher: “Histórias como a dela ampliam o nosso horizonte e permitem vislumbrar outras pessoas que fizeram contribuições muito significativas dentro de seu campo. Agora estamos tendo a oportunidade de descobrir mais dessas histórias e, assim, enriquecer muito o nosso conhecimento sobre a história das ciências no Brasil”. 

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Snethlage (em pé) no hoje Museu Paraense Emílio Goeldi, em Belém, início do século passado. Foto: Museu Paraense Emílio Goeldi.

Ao lado de Junghans, do ornitólogo David Conway Oren (1953-2023) e de Rotger Michael Snethlage, bisneto da cientista alemã, Sanjad trouxe a público nota biográfica e comentários sobre dois documentos da cientista traduzidos do alemão: um relato de viagem inédito ao rio Tocantins, de 1907, e o obituário publicado em 1930, escrito pelo sobrinho neto dela, o etnólogo e ornitólogo Emil-Heinrich Snethlage (1897-1939). Ele fez também a revisão final da tradução do alemão para o português de um artigo de Snethlage que é considerado a primeira etnografia sobre os Xipaya e Kuruaya, publicado em 1910. Outro artigo, também relacionado aos povos do Xingu, aborda viagem da zoóloga em 1914, quando ela formou uma coleção de objetos das duas etnias, a única existente no mundo, preservada pela instituição que patrocinou a expedição, o Museu de Etnografia de Berlim. 

Atualmente, Sanjad, Beatrix Hoffmann e Crozariol estão organizando a correspondência de Snethlage. “São 150 cartas coletadas em instituições do Brasil, Inglaterra, Alemanha, Suíça e Áustria. O arquivo e a biblioteca dela foram destruídos na Segunda Guerra”, diz o historiador da UFPA, informando que o livro com as cartas preservadas será publicado no ano que vem pelo Museu Paraense Emílio Goeldi.  

Crozariol, Sanjad e Junghans destacam a relevância das contribuições de Snethlage para a ciência nacional e têm expectativa de que os restos mortais da cientista alemã sejam localizados, e seu túmulo, restituído. 

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